A liberdade de expressão e o debate sueco
A Suécia já foi uma comunidade religiosa forte na Escandinávia, pois no período pagão os vikings realizavam peregrinações para os cultos no templo de Uppsala. Por volta do ano 1000 a cristianização tornou-se uma realidade entre os suecos, cujo principal ápice ocorre com o advento da Reforma Protestante, a qual consolidou a Igreja da Suécia.
Atualmente a Igreja da Suécia possui tradição luterana e nominalmente compõe cerca de 50% da população, todavia com o avanço da ideologia secularista muitas pessoas decidiram declinar da prática religiosa. Alguns grupos optaram pelo agnosticismo, outros grupos pelo ateísmo, porém o Estado nórdico observa a ascensão de grupos neopagãos, tal como o Movimento Àsatrú, e abriga diversas minorias religiosas majoritariamente cristãs e muçulmanas.
Segundo a Myndigheten för stöd till trossamfund (Autoridade para Comunidades Religiosas) a estatística de religiões no país, em 2021, destaca em ordem crescente as cinco religiões com mais adeptos no país: a Igreja Católica Romana (126.286), a Igreja Ecumênica (111.456), os Pentecostais (115.403), a Igreja Evangélica Livre (44.163), e a Fundação Evangélica Fosterland (43.877). Além desses e importante frisar que o quantitativo de pessoas dos Conselhos Islâmicos atinge 224.459 membros, e o quantitativo de pessoas das representações das Igrejas Ortodoxas e Orientais atinge 716.709 membros.
A Suécia é um Estado que valoriza a liberdade de expressão e a democracia, e sua prática é tão intensa que recentemente houve a permissão da Polícia para a realização de protestos com a queima de livros religiosos, todavia é importante salientar que não cabe a Polícia local ponderar juízo de valor, mas conceder ou não as licenças para a realização de atos públicos na forma da legislação.
No âmbito do ato o movimento começou com o ativista anti-imigração, dano-sueco, Rasmus Paludan, o qual ateou fogo em um Corão em frente as embaixadas da Turquia e do Iraque em Estocolmo, capital da Suécia, respectivamente nos dias 21 de janeiro e 19 de julho de 2023. Segundo Paludan, que é o líder do Partido de Extrema Direita Stram Kurs (Linha dura), ele alega ser contrário às negociações entre a Suécia e Turquia para o ingresso da primeira na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
A repercussão negativa trouxe a Estocolmo o descontentamento de diversos muçulmanos no exterior, e acarretou na ameaça do presidente da Turquia, Recep Erdogan, de bloquear a adesão da Suécia na OTAN. No Iraque houve a invasão da embaixada sueca em Bagdá por um grupo de religiosos insatisfeitos com a queima do Livro Sagrado. Além disso o Estado iraquiano requisitou a saída do embaixador sueco do território.
Em período intermediário as ações de Paludan na Suécia ocorre um novo ato de queima do Corão. Dessa vez em 28 de junho de 2023 sob a liderança de dois imigrantes iraquianos, Salwan Momika e Salwan Najem, os quais queimam o livro religioso em frente a uma Mesquita em Estocolmo. A ação agravou-se na perspectiva ética, pois a dupla realizou o ato no dia do feriado religioso de Eid al-Adha, e ale disso Momika untou um bacon junto ao livro, rasgou suas páginas, chutou e pisoteou o livro antes de queima-lo.
Semanas após o fato a dupla Momika e Najem voltam a queimar o livro religioso islâmico em frente ao Parlamento sueco no dia 31 de julho de 2023. A alegação para os dois atos feitos é a busca pela proibição do Corão na Suécia, cujas palavras de ordem são vistas no jornal Expressen: “É só um pedaço de papel”, disse Monika. “Vou queimar isso muitas vezes, até que você proíba”, afirma Najem.
O Corão não é o único livro religioso que os extremistas desejam queimar, pois solicitações para a queima da Bíblia e da Torá em frente a Embaixada israelense foram feitas a Polícia, todavia felizmente não seguiram seu curso, visto que houve a desistência do organizador, o qual alegou que a ação tinha a intenção de apoiar a liberdade de expressão.
O debate sobre a liberdade de expressão e a liberdade religiosa na Suécia dividem as opiniões, visto que existem basicamente três grupos: aqueles que não veem a quebra da liberdade de expressão com a queima de livros religiosos; aqueles que veem a pauta como crime de ódio; e aqueles que veem a questão como crime de incitação étnica.
No âmbito da compreensão de cerceamento da liberdade de expressão o advogado e diretor do Instituto Norueguês de Direitos Humanos, Vidar Strømme, afirmou no jornal NRK sobre o tema: “Para onde vai a liberdade de expressão?
O limite da liberdade de expressão é o discurso de ódio. Portanto, queimar um Alcorão em si não é discurso de ódio. Queimar um Alcorão não visa indivíduos, visa a religião, diz ele. Uma proibição é uma intervenção. É absolutamente fundamental que possamos nos expressar”.
O entendimento de Strømme sinaliza uma discordância da ação com o crime de ódio, pois enfatiza-se a queima abrange uma crítica a religião e não aos indivíduos. Diante disso seria um erro quaisquer tentativas de limitação da expressão da sociedade.
No âmbito da percepção de crime de ódio a Bispa da Diocese de Lolland-Falster e para as congregações de migrantes da Dinamarca, Marianne Gaarden, salientou no jornal Udfordringen que: “No Código Penal, já temos uma proibição do discurso de ódio quem zomba e humilha publicamente as pessoas por causa da sua fé. Queimar o Alcorão e outras escrituras sagradas é precisamente uma zombaria da fé das pessoas e não tem nada a ver com a liberdade de expressão. Não é a liberdade de expressão que está atualmente ameaçada – é o próprio diálogo democrático”.
A pauta apresenta uma importante reflexão legal e filosófica sobre a temática, a qual está sendo vista pelo olhar da liberdade de expressão, e não pelo ódio e zombaria. Nesse sentido as palavras de Gaarden contribuem para pensar no fator da democracia, convivência pacífica, e respeito entre grupos distintos.
No tangente a incitação étnica o professor de Direito da Universidade de Lund, Vilhelm Persson, comentou no jornal Aftonbladet: “É possível que algumas queimadas do Alcorão sejam aceitáveis e outras não. Não menos importante, o que é dito em relação à queimada pode afetar a avaliação. Queimar um Alcorão é mau por si só para alguns muçulmanos. Portanto, não sei se é visto como mais desrespeitoso, por exemplo, colocar bacon no Alcorão”.
A questão é dúbia, pois é difícil saber se existe aplicabilidade para os fatos. Persson ainda reforça que nunca houve um julgamento nesse sentido no país, porém sob a perspectiva legal algumas queimas do Corão podem ser concordes, entretanto é preciso analisar se outras encaixam-se na legalidade, visto que existe o fator do discurso, do horário, do local, e do bacon.
Consoante os especialistas advoga-se que é um atentado a ética humana queimar quaisquer livros ou símbolos de natureza religiosa, visto que ambos abrangem uma relação afetiva e íntima de cada pessoa no mundo. De forma análoga pode-se dizer sobre os objetos que são significativos na construção da vida e identidade de não religiosos.
No tangente a questão específica na Suécia percebe-se uma carência de tato social por parte da sociedade local, a qual é livre para expressar-se, porém é imprescindível ater atenção para não incorrer no fundamentalismo secularista, visto que percepções corrosivas podem ascender no país, tal como o nazismo ocorreu na Alemanha.
Diante dos discursos de Hitler milhões de alemães convenceram-se de que era uma prática normal realizar certas ações, às quais foram inseridas no ordenamento jurídico do país naquele período. Logicamente os fatos recentes com a queima do Corão são distintos dos fatos nazistas, entretanto chama-se a atenção para a necessidade de equilíbrio, pois da mesma forma que ninguém deseja viver em um fundamentalismo religioso, também, ninguém deseja viver sob um fundamentalismo não religioso.
No âmbito do mérito é factível considerar, tal como erro a aprovação da queima de livros, pois eles não representam apenas pedaços de papéis, mas diversos tipos de conhecimento, e por conseguinte o aplauso a atos de sua destruição apenas reforça um convite a alienação.
Observa-se que na sociedade democrática o respeito ao outro e as suas convicções cabem a todos os cidadãos, e o oposto, ou seja, a discriminação e o ódio cabem a regulação estatal. Faz-se necessário distinguir os atos de expressão e protesto, os quais tendem a estimular a reflexão de ideias, dos atos que prezam pelo ataque à terceiros, sejam eles indivíduos, sejam membro da coletividade.
Referências
Nova queima do Alcorão planejada no Riksdag da Suécia
https://www.expressen.se/nyheter/ny-koranbranning-utanfor--sveriges-riksdag-pa-mandag/
(Acesso: 30.08.2023).
Especialista: A queima do Alcorão pode ser contra a lei
https://www.aftonbladet.se/nyheter/a/5BvBRO/expert-koranbranning-kan-strida-mot-lagen
(Acesso: 30.08.2023).
Especialista em liberdade de expressão: “Todos podem atear fogo aos seus próprios livros”.
https://www.nrk.no/norge/ytringsfrihetseksperter-om-koranbrenning-1.16502408 (Acesso: 30.08.2023).
A queima de livros religiosos
https://udfordringen.dk/2023/08/afbraending-af-religioese-boeger/
(Acesso: 30.08.2023).
Estatísticas sobre sociedades de fé
https://www.myndighetensst.se/kunskap/statistik-om-trossamfund.html
(Acesso: 30.08.2023).
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